Estou em casa, encolhida, recolhida, um pouco destroçada. Ao lado, minha filha dorme abraçada a sr. Rosa, um porco, o animal de pelúcia favorito (que, durante dois dias, achamos ter sido roubado quando arrombaram nosso carro – já tinha mapeado um similar nos EUA pra criança desoladíssima).
Outro dia li O Corpo Interminável, de Claudia Lage, um livro sobre alguma das tantas buscas de respostas e raízes de filhos e filhas da ditadura. Era, entre outras coisas, a história de uma mãe que não arregou diante da luta porque estava grávida. Uma mulher que violou o sacerdócio sagrado da maternidade para combater atrocidades, e acabou, ela mesma, morta – o filho, a filha, entregue aos avós, a outras famílias, o pai que discordava da guerrilha, exilou-se.
Por essas coincidências que na verdade são a vida alinhavando nossos retalhos, o livro seguinte foi Clarice, de Roger Mello, e embora um livro juvenil, também era sobre a ditadura, sobre o atordoamento de uma adolescente que viu/não viu a mãe ser levada, os pais desaparecerem. Como uma mãe, essa santa, se deixou prender por subversão e largou a filha aos cuidados de tias, primos estranhos, na Brasília ainda jovem?

E, confinada que estou, assisti a The Hot Zone, a mais adequada e mais inadequada escolha para tempos de coronavírus. A série ficcional do National Geographic – “baseada em fatos reais” – apresenta a coronel Nancy Jaax, que trabalha em um laboratório militar dos EUA com vírus e outros agentes biológicos. Ela identifica um surto de Ebola no país e, entre os desafios, está balancear o ímpeto de salvar o mundo com a necessidade de proteger os filhos. Chega uma hora o marido, também coronel, a tira da missão para protegê-la (e fica puto porque ela expôs a família ao vírus sem contar – fuéén pra ela). Ela, uma mulher que brigou para escalar a hierarquia militar por seus méritos, nos anos 80, fica fula. E logo depois vai ver os filhos.

(Ruth Wilson como a sra. Coulter)
A perversa sra. Coulter, de A Bússola Dourada, que estou assistindo com Cecilia, é dessas mães pecadoras. Entregou a filha para outros cuidarem porque precisava protegê-la – e porque queria poder. Reencontra a menina e é cruel com ela, por, entre outras coisas, não se revelar sua mãe. Como, como uma mãe pode fazer essa opção? Há redenção possível (quem leu os livos já sabe a resposta)?
A trajetória de Lenu na tetralogia napolitana de Elena Ferrante narra com maestria toda a mancha que recai sobre o que se considera uma mãe ruim: a mãe escritora, a amante, a mulher. E as filhas ficando de lado, à deriva, apenas um pedaço, não o todo, da vida dessa mulher que se colocou no centro do palco. Envelheceu só, Lenu. Meio mãe, um pouco de sucesso. Nem cá, nem lá, nem nada.
Ser mãe é assim. Esse limiar eterno e bamboleante. A coragem diante do mundo e a ferocidade leonina com a prole. Os homens que salvem os países e derrubem os ditadores, muita gente pensa, muita gente nos faz pensar, a gente mesmo pensa. Mas o que seria do mundo sem as incríveis mulheres que também são mães? O que seria do mundo sem as mães?
“Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos
Seja feliz, seja feliz”