A escrita de si, o diário, a confissão ou a autobiografia, são formas de conhecimento e individuação. São espaços de memória de memória e invenção – ficções de si.
Os olhares que o biógrafo-biografado lança sobre a vida são, em geral, olhos de adulto, do velho que relembra, reflete, reconta, inventa. Olhares da saudade, de partida – de quem vê tudo pela última vez (Hemingway?). Muitas vezes, essas memórias da infância nos parecem, à leitura, muito mais lógicas, ajustadas, que a infância vivida, esse jardim do Éden, a Macondo pessoal que cada um tem a sorte de viver mais ou menos. Outras vezes são distantes, como se contadas por alguém que não as viveu.
Vendo a infância acontecer na minha frente, percebo muito mais o domínio do campo do afeto que do discurso, da lógica e da razão. Também da violência, do impulso, de uma meta-lógica bastante peculiar. Maravilhas.
Na sexta série, a professora de literatura nos passou para ler um livro raro, desses que capta todo o sentimento da infância na literatura. Anos e anos depois, essa história se costurou à minha vida e foi o primeiro livro que comprei para Cecilia.

Olhinhos de gato narra a infância de Cecília Meireles. Órfã, criada pela avó, ela conta o mundo por onde flanou quando era menina com uma riqueza de metáforas; simbolista, quase; poesia vertida em prosa. Quando li a primeira vez, me pareceu que ele tinha sido escrito pela menina Cecília. Quando reli, à espera da minha menina Cecilia, continuou me parecendo um livro infantil. Sinto que aquela foi a infância de Cecília Meireles.
A metafísica dos tubos vai em uma direção muito distinta, mas Amélie Nothomb me pareceu, sempre, muito precisa no diagnóstico que faz da infância – da dela, da de muitas de nós – cruel e irônica. Se ler Cecília me dá a dimensão do que sentem as crianças, ler Nothomb sempre me pareceu um excelente diagnóstico do que as crianças pensam sobre o mundo. Ela vê a infância heterodoxa que viveu – belga no Japão – da distância da adulta, mas eu acredito que foi aquilo que ela viveu.
Gosto de voltar a esses livros, minhas autobiografias infantis preferidas, e que ainda por cima são livros escritos por mulheres, que falam de um universo de meninas-mulheres. Daqui a um tempo, minhas visitas serão guiadas com Cecilia. Vamos descobrir como outras meninas construíram esses castelos nas nuvens chamados infância.
”Olhinhos de gato” está esgotado. Comprei na Estante virtual. Tem aqui.